Eu me pergunto isso desde a primeira vez que assisti a O Segredo dos Seus Olhos. Não era apenas o roteiro afiado, a atuação intensa ou a trilha sonora que parecia circular por dentro do meu corpo — era algo mais profundo. O cinema argentino tem uma obsessão por diálogos longos, cenas silenciosas e aquele realismo cru que às vezes chega a doer. Enquanto o cinema brasileiro muitas vezes foca no calor, na violência urbana e nas cores pulsantes, o argentino parece preferir a penumbra, o existencialismo e o silêncio que grita.
É claro que há exceções. Mas não dá pra negar: os argentinos têm uma forma de narrar que mistura melancolia e sarcasmo, quase como se Borges e Cortázar estivessem supervisionando cada roteiro. Eles gostam de falar sobre a ditadura, sobre amores impossíveis, sobre a passagem do tempo — mas sempre com um senso de humor ácido que não pede permissão. Enquanto isso, no Brasil, a narrativa tende a ser mais solar, mais direta, mais escancarada.
Por que tantos filmes argentinos viram cult no Brasil?
Você também já notou isso? Que sempre tem aquele amigo que te recomenda Relatos Selvagens como se tivesse descoberto um segredo obscuro? A verdade é que o cinema argentino fala com o nosso subconsciente latino — só que com uma inteligência que nos intriga. Os temas são universais (amor, vingança, política, morte), mas o tratamento é artesanal, quase literário. O ritmo é outro: mais lento, mais contemplativo, e talvez por isso mesmo, mais viciante.
Outro fator é a atuação. Os atores argentinos, principalmente nomes como Ricardo Darín ou Érica Rivas, atuam com uma contenção que a gente estranha no começo — mas depois não quer mais largar. Eles não precisam gritar para a gente entender o drama. Basta um olhar, um silêncio, uma pausa longa o suficiente para você se afogar dentro dela.
O cinema argentino é tudo “filme de festival”?
Essa é uma das maiores injustiças que ouço por aí. A fama de “filme cabeça” ainda persegue o cinema argentino, como se todo longa fosse uma aula de semiótica. Mas a verdade é que a produção do país é muito mais diversa do que se pensa. Tem comédia romântica (e das boas), tem thriller, tem até ficção científica experimental. O problema é que só chega pra gente o que foi premiado — e aí cria-se essa impressão de que tudo é denso, político, filosófico.
Mas já assistiu Mi Obra Maestra? Ou El Robo del Siglo? Filmes leves, com ritmo, diálogos afiados e reviravoltas de roteiro que fariam inveja a muito blockbuster americano. A Argentina tem uma indústria pequena, é verdade, mas extremamente criativa. Cada peso investido precisa render ideias, e isso obriga os roteiristas a fazerem mágica com pouco.
Quem são os grandes nomes do cinema argentino que eu deveria conhecer?
Se você só conhece o Darín, calma que a viagem está apenas começando. Juan José Campanella é o nome por trás de O Segredo dos Seus Olhos e de várias outras obras-primas com pegada emocional. Mas também vale conhecer Lucrecia Martel, uma diretora que não tem medo de experimentar som, estrutura e subjetividade — seus filmes, como La Ciénaga, são um mergulho profundo na alma humana.
E tem também Pablo Trapero, que explora o lado mais cru da realidade argentina. Seu filme El Clan é um estudo de caso sobre crime e poder familiar. Por outro lado, Damián Szifron, criador de Relatos Selvagens, é um gênio do absurdo moderno — seus roteiros são como pequenas bombas-relógio prestes a explodir.
Ah, e se você curte uma vibe mais indie e provocativa, não deixe de ver os trabalhos de Martín Rejtman ou de Ana Katz. Eles não fazem cinema pra agradar — fazem pra cutucar.
Como a política influencia o cinema argentino?
Essa pergunta poderia virar uma tese, mas vou tentar resumir. A Argentina tem uma história recente marcada por traumas profundos: ditadura militar, desaparecidos, crise econômica, inflação crônica, e uma relação conflituosa com o próprio passado. Isso tudo se infiltra no cinema, de forma direta ou simbólica. Mesmo quando o filme não é abertamente político, existe um subtexto crítico, quase sempre presente.
O cinema argentino usa a tela como espelho torto — mostrando o país sem maquiagem, mas também sem cinismo. É uma arte que serve de denúncia, de memória, de resistência. E isso não é novo: desde os anos 80, com a redemocratização, o cinema se tornou uma forma de processar o trauma coletivo. O resultado são filmes densos, sim, mas também corajosos.
Vale a pena mergulhar fundo no cinema argentino?
Se você ainda não mergulhou, está perdendo uma das cinematografias mais ricas da América Latina. E quando digo “mergulhar”, não estou falando de ver um filme ou outro: estou falando de assistir, refletir, revisitar. O cinema argentino não é para quem quer distração, é para quem quer transformação. Ele não entrega respostas fáceis, mas obriga você a fazer perguntas que nem sabia que precisava fazer.
E talvez, só talvez, seja esse o maior mérito dele: nos tirar do piloto automático e nos colocar cara a cara com aquilo que tentamos ignorar — o absurdo, o desejo, o tempo, a política, a morte. Não é um cinema que agrada a todos, mas é um cinema que respeita a inteligência de quem assiste.
Então a pergunta final é: você está pronto pra sair da superfície?
Quais são os filmes obrigatórios para entender o espírito do cinema argentino?
Essa pergunta me faz pensar em uma espécie de “cartilha existencial” que todo amante do cinema latino deveria estudar. Não estou falando apenas dos premiados, mas dos que traduzem o que é ser argentino diante de uma câmera. O primeiro da lista, claro, é O Segredo dos Seus Olhos (El Secreto de Sus Ojos, 2009). Ele é quase um ponto de virada: combina mistério policial, romance, drama político e um roteiro tão bem costurado que cada frase parece uma peça de xadrez. Mas não pare por aí.
Relatos Selvagens (Relatos Salvajes, 2014) é outra joia. Um filme episódico, cruel, engraçado e absurdamente real. São seis histórias sobre o limite da paciência humana — ou melhor, sobre como todo mundo é capaz de perder a civilidade num segundo de fúria. Assistir a esse filme é como reconhecer o monstro que existe dentro de todos nós. E rir disso.
Agora, se você quer algo mais silencioso e profundo, assista a La Ciénaga (2001), de Lucrecia Martel. É um daqueles filmes em que “nada acontece, mas tudo está acontecendo”. Uma crítica social feita com imagens, sons, e a mais desconfortável normalidade.
E se for fã de biografias e tramas densas, El Clan (2015), de Pablo Trapero, é obrigatório. A história real da família Puccio, que mantinha pessoas sequestradas dentro de casa enquanto jantava tranquilamente no andar de cima, é contada com um realismo sufocante. Um retrato brutal da hipocrisia burguesa e da violência que habita o cotidiano.
Como o humor argentino se manifesta no cinema?
Ah, o humor argentino… ácido, desconfortável, quase cruel. Esqueça o pastelão. Esqueça a piada óbvia. Aqui, o riso vem do inesperado, do trágico, do que você não deveria rir — mas ri – como faço no Lucidarium. É um humor que nasce do colapso. Os roteiristas argentinos são mestres em provocar o espectador com situações absurdas que poderiam perfeitamente acontecer amanhã com você. Relatos Selvagens é o exemplo mais direto disso, mas há muitos outros.
Em Um Conto Chinês (Un Cuento Chino, 2011), Ricardo Darín interpreta um homem metódico e solitário que vê sua rotina virar do avesso ao precisar conviver com um chinês que não fala uma palavra em espanhol. O filme é hilário justamente por mostrar o absurdo da convivência, da linguagem e do egoísmo urbano.
O humor argentino também aparece muito na forma como os personagens se expressam: falam rápido, com entonações irônicas, frases que parecem normais mas carregam críticas sociais inteiras. É um humor que exige atenção — e que recompensa quem capta a segunda camada.
Qual é a relação entre literatura e cinema na Argentina?
Essa é uma das chaves para entender o porquê da densidade, da estrutura narrativa e da originalidade de tantos roteiros argentinos. A Argentina é um país onde a literatura ainda é valorizada como pilar cultural. De Borges a Cortázar, de Bioy Casares a Mariana Enriquez, os escritores sempre foram figuras centrais na vida pública — e essa reverência à palavra escrita transbordou para o cinema.
Não é à toa que muitos filmes parecem contos filmados. A influência de Jorge Luis Borges, por exemplo, pode ser sentida na construção de roteiros que exploram o tempo, a identidade, o duplo, o labirinto. Filmes como Los Crímenes de Oxford, coprodução com a Espanha, carregam essa estética literária nas entrelinhas. Já El Aura, de Fabián Bielinsky, traz um protagonista que lembra um personagem de Cortázar: introspectivo, perdido em si mesmo, quase metafísico.
Inclusive, há adaptações diretas de obras literárias argentinas, e elas geralmente mantêm esse respeito pela ambiguidade, pelo ritmo, pela linguagem. O cinema argentino não corre — ele caminha com um livro nas mãos, e às vezes nos obriga a reler uma cena como se fosse um parágrafo denso e cheio de camadas.
Onde assistir aos filmes argentinos fora dos festivais?
Essa é a pergunta que todo fã do cinema argentino se faz depois de se apaixonar por um ou dois títulos e não saber onde encontrar o resto. A boa notícia é que a distribuição está melhorando, e algumas plataformas de streaming já entenderam o valor dessas obras.
Na Netflix, por exemplo, você encontra títulos consagrados como O Segredo dos Seus Olhos e O Cidadão Ilustre. O MUBI é uma mina de ouro pra quem busca filmes mais alternativos ou clássicos esquecidos. E o serviço argentino CINE.AR oferece filmes locais com legendas — é quase como entrar direto na sala de cinema de Buenos Aires.
Também vale garimpar no YouTube, onde alguns filmes independentes são disponibilizados de forma legal pelos próprios diretores. Além disso, canais como o Belas Artes à La Carte (no Brasil) ou o Filmin (em Portugal) frequentemente incluem obras argentinas em seu catálogo rotativo.
Mas, sinceramente? O melhor caminho ainda é o boca a boca. Pergunte pra quem ama cinema. Peça indicações. Compartilhe links. Porque parte da magia do cinema argentino está justamente nisso: no mistério da descoberta. No prazer de encontrar uma obra que ninguém viu ainda — e sentir que você acabou de desenterrar um tesouro escondido na Patagônia emocional de alguém.